segunda-feira, 10 de março de 2014

Matilde: o nascimento

(Um mês e 17 dias depois, começa a relato sobre a melhor e maior experiência dos meus 32 anos e 10 meses de vida)

Nos Estados Unidos comemora-se o dia de Martin Luther King. Em Cabo-verde, o dia da morte de Amílcar Cabral, dáo mote à celebração do dia dos Heróis Nacionais. Em Portugal, 20 de Janeiro de 2014, é o dia da chegada da nossa Matilde.

O dia começou bem cedo. Acordo tranquilamente com o despertador. Banho e depilação. Últimas fotografias com a cria na barriga. Saio de casa de estômago vazio e a certeza de ter a Matilde nos braços antes do almoço. Chego ao hospital antes das 9. Inscrição para parir. Chamada à triagem (sim, mesmo uma entrada para parir precisa de passar pela triagem). Pulseira laranja, ordem para esperar. Esperar. Esperar... Fome. Sede. Muita fome. Muita sede. Peço ao esposo uma garrafa de água. Bebo (maior erro do dia: nenhum de nós tem a noção que beber água quebrava o jejum obrigatório para a cesariana). Quase 11 horas. Sou chamada para a consulta.

Calha-me uma médica velha e de má cara (medo!!!!). A consulta começa com as perguntas do costume, mas quando, com a maior das naturalidades, digo que comi pela última vez às 2 da manhã mas bebi água por volta das 9 e qualquer coisa, a velha começa com aquele discurso condescendente de quem está a ralhar com uma criança. Olho para ela e apetece-me atirar-lhe com uma cadeira. Respiro fundo (penso para mim: ainda calha ser ela a fazer-me o parto e na sala de operações serei o elo mais fraco). Termina com um "agora só podemos marcar a cesariana para as 15 horas". Sinto vontade de perguntar-lhe se ela achava mesmo que levantei-se às 8 da manhã e fui ao hospital beber 25cl de água para poder esperar mais 6 horas para ter a criança. Disse apenas "não sabia que não podia beber água". Exames de rotina. Depois das apalpações e da eco para confirmar que ela continuava sentada, sou encaminhada para uma sala de partos, num corredor onde para além de enfermeiros, auxiliares, estagiários e parturientes, também havia pedreiros e todos os barulhos normais de uma ala em obras.

Tenho um quarto só para mim, mas caso viesse a ser necessário, tinha 2 ou 3 trolhas mesmo à minha porta. Bata ridícula (sem cuecas e com rabo à mostra). Soro. Maquinetas para ouvir o coração do bébe. Telemóvel na mão. Ordem para esperar. Esposo, que tinha ido a casa buscar os exames que ficaram esquecidos, chega com a minha mala. Deram-lhe uma bata, embora sem rabo à mostra, era igualmente ridícula. Esperar. Enfermeiras entram e saem. Berbequins trabalham sem parar. Esposo sai para almoçar. Entra alguém que vem buscar a roupa que vão vestir à bebé. Esperar. Esposo volta do almoço. Continua-se a olhar para o relógio a cada 5 minutos. Continuo tranquila. 15 horas.

Entram algumas pessoas e começam as suas tarefas. Bata fora. Pernas abertas e um tubinho para fazer xixi. Máquinas desligadas. Lençol até ao pescoço. Porta aberta. Até já ao esposo. Cama a andar e os trolhas a ficarem para trás. Primeira fronteira. Muda-se de cama. Novas pessoas. Cama a andar. Sala de operações. Muitas pessoas. Frio. Uma vista de olhos e lá está ela num canto: médica velha e de má cara (ainda bem que não lhe atirei com a cadeira). Movimentações. Um enfermeiro "trabalha-me" um braço enquanto o anestesista pede-me que fique em posição de "gata assanhada" (uhhh, não sei o que estavam à espera mas estou aqui para ter uma criança). Ufa, afinal é só mesmo para arquear as costas. Sinto a picada. Estou outra vez de barriga para cima na posição de Jesus na cruz (braços abertos).

Médicos e enfermeiros em posição. Sinto que estou prestes a vomitar e o penso "oh não, isto está tudo esterilizado e agora vou eu estragar isso com os meus vômitos". Segundos depois estou bem. Panos verdes à frente e fico sem ver a minha barriga. Borrifam-me com qualquer coisa no baixo ventre. "Sentiu quente ou frio?". "Apenas uns salpicos". Anestesista continua a sua monitorização. "Podemos, senhor anestesista?". "Podem". "Está a doer?". "Não". Sinto qualquer coisa diferente e de repente puxam-na de dentro de mim. 15 horas e 57 minutos. Choro. Muito choro. À minha cabeceira, o anestesista anúncia a chegada dela com um "parabéns, já nasceu a sua princesa". Mais abaixo, um enfermeiro exclama: acabou o sossego. Enfermeira dá a volta e encosta-a à minha cara. Quero mexer os braços, mas não posso. Olho para ela e parece-me perfeitinha (penso para mim: se houvesse algum problema também diziam qualquer coisa). Sinto-a a afastar pelo choro que vai ficando cada vez mais distante. Acabou. Aconteceu tudo tão rápido. Mais tarde vim a saber que o esposo discorda de mim.

Ela já nasceu, mas o parto ainda não terminou. Sou outra vez o centro das atenções. Oiço os agrafos e aquilo que parece-me ser uma médica (a velha) a dar indicações à mais nova: faz isso, agora puxa acolá, blá, blá, blá. Penso: isso ainda demora? Quero saber da Matilde. Muda o turno e são novos enfermeiros a limparem-me e fazerem-me o penso. Trazem a Matilde vestida e embrulhada na manta. Já não chora. Continuo sem poder mexer e mais uma vez só tenho direito a bocheca com bocheca. Dou-lhe um beijinho e colo a minha cara à dela. Voltam a tirá-la do pé de mim para ir conhecer o pai e os avós que esperam ansiosos no corredor. Cama a andar. Nova sala: o recobro. Tenho sede, mas não posso beber água. Enfermeira para lá de simpática deixa entrar o esposo e os sogros para, como ela diz, dar um beijinho rápido à mãe. Não sinto as pernas e é uma sensação estranha. Tenho de ficar pelo menos uma hora. Telefonam do internamento a pedir que me levem porque a menina está a chorar com fome. Tenho o primeiro momento de preocupação: onde está o leite?. Enfermeira tranquiliza-me: não se preocupe, vai ter leite quando lá chegar. Não sei se passou uma hora. Cama a andar. Sigo para o internamento. Continuo com sede e com as pernas dormentes.

Próximo capítulo: o internamento.

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